segunda-feira, 30 de março de 2015

Uma sacada, células mortas e pensamentos vivos.



Quando o calibre da arma é alterado, o poder de fogo aumenta. Não que as armas possam ser alteradas... O lance é que quando se morre, apenas se morre. Muita gente pensa que a vida de alguém que faz arte é sublime. E é mesmo. Porque qualquer tipo de vida é sublime. Só por viver. De que adianta ter tudo e estar morto? Melhor ser um nada vivo do que um monte de coisa, mas morto.

Como escrever nunca foi uma grande obrigação, deixei que as inspirações viessem à velha moda do “Deus dará”. Parece que Deus quer dar as ideias, as palavras chaves, a seta e o alvo... Mas estas metas divinas não me fisgam por pura falta de preparo do meu intelecto. Sou uma anta. Não enxergo o óbvio na ponta do nariz.

Numa dessas andanças por aí, acabei parando no Pelourinho, em Salvador. Não vou falar de arquitetura ou do óbvio bem na ponta do nariz. O fato é que fui me fotografar, e percebi que atrás de mim havia um lugar famoso em meu imaginário. A sacada de um daqueles casarões. Nesta sacada havia uma imagem do Michael Jackson. No famoso clipe que ele fez no Brasil, o Olodum e o Pelourinho foram levados ao mundo, bem como o Rio e suas favelas. Todo mundo já viu o clipe de They don’t care about us. De todos que já assisti do Michael, é o que mais me chama atenção. Me arrepia. Sempre.

Bem, ao passar por aquele lugar, e olhar aquela sacada, e imaginar que ele esteve ali há mais de 20 anos atrás, me arrepiei. Chovia fino. Era domingo. Meio-dia. Fazia silêncio. Americanos fotografavam. Policiais olhavam pelos cantos. Vendedores ambulantes amarravam fitinhas do Senhor do Bonfim em braços estirados a contra gosto. Por sinal amarraram no meu. A contra gosto.


Fiquei dali, olhando um tempão aquela sacada. E parecia que só eu fazia isso. Sou, apesar de tudo, um tanto materialista, no sentido de “precisar tocar na matéria”. Por um segundo supus que ainda haviam células mortas das mãos do Michael na ferrugem daquela varanda. 

Ok, viajei. Mas é disso que falo. De viagens. Elas me livram do ócio. Levam-me à ingenuidade genial que retira a obviedade de qualquer ponta de nariz. Bem, depois desses minutos de atenção, fui até à casa azul. Embaixo funciona uma lanchonete, que além de comidas, vende artesanato e aquelas coisas que os turistas adoram levar para casa. Havia uma moça e me atendeu muito bem. Perguntei a ela como fazia para chegar ao “Comércio”. Ela pediu para voltar todo o caminho até o Elevador Lacerda, pois “estava deserto, e seria perigoso andar pela baixada do pelô”.

Agradecido, saí sem comer nada, nem comprar qualquer porta canetas com um berimbau e a famosa frase: Lembrança de Salvador, Bahia.

O fato é que Michael morreu. Mas parecia que ele ainda estava lá. Naquela sacada. Com óculos Rayban aviador, branco feito um queijo minas, vestido numa camisa rasgada do Olodum e o dedo em riste, impositivo, desafiador e fenomenal, como só ele sabia fazer. 

As pessoas se vão e, depois de um tempo, é como se elas nunca tivessem existido. Porque só existe aquilo que está vivo em nossa consciência, pelo período que durar a memória. O sono passa, a gente acorda e o mundo continua girando. Porém, sempre haverá aquele dia em que o cheiro, o lugar, a sacada, a carta, e a canção trarão aquela pessoa de volta. E nessa hora, esse alguém estará ali. E viverá, mesmo morto.
 
Disse bem o Ferreira Gullar:

os mortos vêem o mundo
pelos olhos dos vivos

eventualmente ouvem,
com nossos ouvidos,
certas sinfonias
algum bater de portas,
ventanias

Ausentes
de corpo e alma
misturam o seu ao nosso riso
se de fato
quando vivos
acharam a mesma graça

Ninguém desaparece de nossa alma. Apenas desaparecemos de nós mesmos. Por enjoar do cotidiano, por enojar do ar, por hostilizar os prazeres repetitivos e por criar mortos, fazendo-os vivos. Até que um dia, vivos, ao observar o óbvio, possamos verificar que alguém ainda dança na sacada. Ou de um casarão antigo, ou de um coração abrigo.



Diego Schaun, 31 de Março de 2015

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

O dia em que Joan Osborne ressuscitou, nasceu um cético piedoso e constante.




Um estranho no ônibus. Sim, estou ouvindo One Of Us, da Joan Osborne. Essa canção tem um ar nostálgico que toma minha vida de uma forma avassaladora. Tenho um lance com essa canção porque desde o seu lançamento, no início dos anos 90, o clipe passou diariamente na TV. Lembro de ver uma loira de cabelos encaracolados, piercing no nariz, e olhar penetrante dizendo Yeah, Yeah, Yeah... Nunca mais esqueci.

Um certo dia alguém me disse que ela havia se suicidado e que sua canção fora proibida pela Igreja Católica por fazer menções a Deus e ao Papa. Por um bom tempo acreditei em tudo isso. Não havia internet. Não havia interesse. Não havia outra verdade. Repassei essa história para muita gente. Cresci dizendo que ela havia se matado. Fazia questão de mostrar esse clipe aos amigos, já adolescente, e afirmar: Sabia que ela se matou?

A reação de todos à essa frase era de consternação. “Puxa, tão jovem. Tão bonita”. Até que numa dessas sessões nostálgicas de falsas afirmações, uma pessoa me disse: Sim, eu sabia que ela havia morrido. Mas na verdade ela não se matou. Foi overdose”. Olha só, uma nova informação.  Overdose! Claro, acrescentei isso ao meu discurso. Sabia que ela morreu de overdose?

Dentro da caixa dos gostos estranhos que possuo se encontra esse, o de dar notícias fatídicas. Se o Papa morrer, quero ser o primeiro a saber e a contar para os outros. Nunca entendi o motivo. É como se eu sentisse prazer em ver o rosto de surpresa das pessoas através de minha fonte verossímil dos fatos. 

Tempos depois, numa dessas pesquisas, descobri o álbum Relish, da Joan Osborne. Redescobri a canção e a cantora, que está vivíssima. Nada de overdose. Nada de suicídio. Minha verdade caiu por terra, graças a Deus. Joan continua linda, cantando, gravando, compondo, e vivendo.

Atribuí esse gosto por noticiar desgraças porque sou humano. Só por isso. As pessoas gostam de ver a surpresa dos outros pela simples necessidade de aparecer. Quando todos estão à espera do resultado de um sorteio, olhos, ouvidos e toda a atenção se voltam para aquele que está com o papel na mão, com o número sorteado. Ele sabe o que o mundo inteiro ainda não sabe.

É esse poder de saber que me consome. Deve te consumir também. Somos iguais, não? Determinação e caráter. Pecadilhos e caridades. Tudo igual. Na mesma hora e no mesmo lugar. Inclusive sua vida volúvel é parecida com a vida volúvel do mundo. Acorda chorando. Diz que me ama. Esquece de mim. Ri e foge. E reaparece. Todos assim. Todos iguais.

O resultado de tudo isso? Nenhum. Dúvida não exprime resultado. Só vomita ócio. Que por sua vez gera desamor. O desamor é um terreno fértil para um novo amor, até que aconteça uma notícia fatídica. E essa eu também quero dar. E você sabe disso. Mesmo que diga não, eu que sei sabes. Do not tell me you don’t know wich is in us, my dear. 


Diego Schaun

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Uma questão de cópia ou a clareza das coisas.

Algum Beatle morreu. E eu não sei mais se a vida se modificou por causa disso. Deveria se modificar? Não. Mas, a essas horas, que sentido faz debater a morte inexistente de um beatle se a vida está em eterna discussão? Será que tudo existe da forma que existe?

Mil vezes olharei para você e jamais saberei a verdade. O que você representa para mim enquanto ser que vive e respira e habita o mesmo lugar que eu no universo?

Não me leve a mal, caro leitor. Estou aqui a vomitar as loucuras que passam pela minha cabeça nas horas mais inoportunas. Talvez você esteja muito preocupado com 2015. Talvez você esteja com o nome sujo. Talvez você esteja infeliz porque foi traído. Talvez você esteja perdido e, olha só, me encontrou. Prazer. Sou tudo isso que você sente ou ainda vai sentir.

De fato, a diferença entre os seres é a cereja do bolo de Deus. Muitas caras e tantos cheiros… Genial esse lance de ser único. Mas com o tempo, ser único já não significa nada. Vai dizer que estou mentindo?
O que seria a moda, então, senão uma tentativa disfarçada e não menos infame de tentar ser o outro? Você, querido leitor, quer ser igual a mim. Mas eu não quero ser igual a você porque você é feio. Brincadeira, mas sim, eu quero ser igual a você, porém, negarei isso para mim mesmo até o fim dos meus dias.

O mundo tem incentivado as pessoas a incutirem na cabeça de seus filhos que é imprescindível ser um líder vencedor. Ganhar de todos. Ser imbatível. O melhor. O the best dos the bestas.

Creio que, por ser um cara mimado e servido de todos os tipos de favores da vida, me tornei um crítico das coisas “in-criticáveis”. Justamente porque me incomoda o fato de entender que todas as pessoas pensam as mesas coisas e afirmam piedosamente que não. Por que negar a origem? Ou melhor, para quê afirmá-la?

Se você chegou até aqui e não entendeu nada, é porque você entendeu tudo. As pessoas se vão e reaparecem em nossas vidas como se fossem areias. As vontades são sempre as mesmas. As palavras também. As rotinas são iguais. Tudo é igual. Inclusive os deuses que se criam são todos iguais. Os pecados são iguais. As morais, as éticas, os ritos. Tudo é igual. Irmãos. Gêmeos siameses.

Uma idiotice e tanto, para alguns. Eu acho isso importantíssimo. Afinal, tem gente que dedica a vida toda a entender os neurônios de um besouro qualquer e é levado a sério. Questionar sobre a obviedade da vida não é sandice. É salutar.

Quem vive de arte, como eu, tropeça quase sempre em buracos negros. As semanas passam e nada acontece. Nenhuma canção. Nenhum acorde. Nenhum solinho. Nada. A fonte esgota. O futuro inesperado se torna mais real que o impossível. E de repente, no dia seguinte, na malemolência de um acordar, um lá lá lá surge, como se fosse um som de alguém que não existe. As canções nascem assim. E então eu percebo que, puxa, estou de volta. De volta à mesmice de ser igual às mesmas coisas e aos mesmos.

Estou de volta. Com as mesmas palavras de sempre. Porque na verdade, o que todos querem de nós é que sejamos nós mesmos, o tempo todo para que a sentença seja uma verdade maldita, por puro deleite das leis naturais.

Diego Schaun